Andre Luiz Santiago Eleuterio
Entre o toque e o código
Como a era transdigital amplia nossas experiências sem apagar o passado
Como a era transdigital pode ampliar nossa percepção do presente sem apagar a memória do que fomos
Assisti recentemente a uma palestra do professor mineiro Saulo Carrilho, especialista em Marketing Digital. A princípio, esperava uma conversa técnica, talvez até previsível. Mas me surpreendi. Ele falava sobre o conceito de “transdigital” não como um termo da moda, mas como um novo modo de viver: um tempo em que o físico, o digital e o simbólico coexistem, fundem-se e atravessam a nossa experiência cotidiana.
A palestra terminou, mas a ideia ficou ecoando. Fui dormir com a sensação de que estamos caminhando para o futuro mas às vezes, sem perceber, deixando o passado cair da mochila. Lembrei da praça onde cresci. Dos bancos de cimento quente no fim da tarde. Das conversas sem wi-fi, sem pressa, sem interrupção. E comecei a pensar se a tal era transdigital nos aproxima da vida ou se nos afasta daquilo que ainda pulsa dentro da gente.
Vivemos tempos em que a realidade se desdobra em camadas quase imperceptíveis. Um banco de praça ainda pode ser apenas um banco, mas também pode conter um QR code que revela histórias escondidas sob a madeira gasta. A fachada de uma igreja antiga pode ser lida por um aplicativo que a recria em 3D, com cor, som e movimento. Entramos, sem perceber, numa era transdigital um tempo em que o físico, o digital e o simbólico não se opõem, mas se entrelaçam, se atravessam, se ampliam mutuamente.
O transdigital não é apenas o que fazemos com a tecnologia, mas como ela se funde ao nosso modo de viver, de sentir, de lembrar. Ele não substitui a matéria, mas a ressignifica. É possível caminhar pelas mesmas ruas da infância, mas agora com um dispositivo no bolso que reconta a história daquele lugar com novas narrativas, sobrepostas àquelas que guardamos na memória. A cidade ganha camadas: a visível, a digital e a sensível. É como se tudo estivesse simultaneamente presente o que é, o que foi e o que poderia ser.
Ainda assim, há algo de essencial que não pode se perder. Porque, mesmo nessa experiência expandida, há uma saudade que resiste: a da velha praça, do prédio onde a avó morava, das conversas ao vivo, sem notificações interrompendo os silêncios. Saudade de quando o tempo parecia se mover mais devagar, e as lembranças se construíam no corpo, no cheiro das folhas, no calor das pedras ao entardecer. O transdigital, quando bem compreendido, não precisa apagar isso pelo contrário, pode ser uma forma de eternizar.
Hoje, a cultura se distribui entre o presencial e o remoto, entre o olho no olho e o avatar. Podemos visitar o museu da nossa cidade por realidade aumentada, mas ele só tem sentido porque um dia existiu com cheiro de madeira encerada e ranger de portas antigas. Um festival pode ser ao mesmo tempo presencial e interativo online e isso não o torna menos real, apenas mais complexo.
A subjetividade também mudou. Somos, hoje, quem somos aqui, mas também quem mostramos ser nos perfis, nos stories, nos registros em nuvem. Mas será que ainda sabemos desligar o celular para ouvir o som da praça ao fim da tarde? Será que ainda olhamos o céu com a mesma atenção com que olhamos uma notificação?
O transdigital nos exige um tipo de presença nova. Um estar em muitos lugares ao mesmo tempo, sem perder o enraizamento. A cidade vive também dentro de nós, com suas esquinas, suas ausências, seus ecos. É possível entrar num espaço imersivo que recria a infância em 3D mas é preciso lembrar que a emoção que sentimos ali não vem só da imagem, vem da memória afetiva que carregamos.
Talvez a maior sabedoria dos nossos dias seja essa: permitir que o digital nos leve adiante, sem nos desconectar do chão onde tudo começou. Visitar a velha praça com um app de geolocalização é válido mas sentar ali, ouvir os passarinhos e deixar o tempo passar sem postar nada é insubstituível.
Porque o futuro transdigital não é escolher entre o ontem e o amanhã. É lembrar que o humano, de verdade, ainda se sente com o corpo inteiro. E isso, nem o mais sofisticado algoritmo poderá substituir.
COMENTÁRIOS